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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Toureiro Equestre, quo vadis?


As tradições, a arte, tudo o que nos rodeia, evolui. Se não o fazem, acabam por se ir perdendo no horizonte da memória. A tauromaquia não foge a este princípio. Há que evoluir, há que procurar novos motivos de interesse, mas também há algo que jamais se pode perder: as bases, a essência e os princípios. Tudo isto parece um pouco contraditório, mas é importante que se tenha consciência de que há uma fronteira muito ténue entre o que se entende por evolução e aquilo que é a transformação/desvirtuação. Serve esta pequena introdução para que se reflicta um pouco sobre o actual panorama do Toureio Equestre em Portugal.

Neste momento, e cada vez mais, é debatida a forma de atrair mais aficionados às praças de toiros, mediante a apresentação de cartéis aliciantes. O que é facto é que a chamada “nova geração” não tem tido o condão de arrastar multidões. O toureio nacional parece estar adormecido, faltando figuras que arrastem multidões. Ainda são os nomes da “geração de ouro” que chamam o público às bancadas (quando chamam!). Não há aqui qualquer tipo de saudosismo ou apologia do “antigamente”, mas a realidade é que não tem havido evolução que cative de forma verdadeira e com emoção, quem assiste. Cada vez mais assistimos a imitações. Imitações que pura e simplesmente descartam as já referidas bases e essência. Tudo ao abrigo de uma pretensa evolução que não passa de um desvirtuar das regras mais elementares. É claro que existem excepções e, ainda bem que as há! Mas o problema é mesmo esse: são excepções, não são a maioria.

Portugal assiste a uma espécie de “mais do mesmo”, com a agravante de esse “mesmo” estar esbatido. Há algumas décadas, assistiu-se à grande revolução do toureio equestre, facto tão badalado sempre que se fala em João Moura, seu autor. Houve realmente uma alteração de conceito, mas as bases sempre estiveram lá e foram respeitadas. Serviu esta acção do Cavaleiro de Monforte, para que também o toureio equestre evoluísse (e de que maneira) em Espanha. No entanto, agora deu-se uma espécie de efeito boomerang: muitos dos que por cá andam e vestem de casaca e tricórnio, parecem ter colocado de parte os fundamentos da Arte que elegeram, para se dedicarem ao que de menos verdadeiro vem do lado dos vizinhos Ibéricos. Há quem diga que é de facto uma questão de conceito. Talvez seja…

Tourear a cavalo não se resume à cravagem dos ferros. O momento da reunião, as sortes, aquela fracção de segundo interminável é o resultado máximo de toda uma série de momentos de preparação que são necessários e fundamentais. Exige-se a um Cavaleiro que saiba montar a cavalo. Não é possível alguém querer dominar o ímpeto e a investida de um toiro se não souber, antes de tudo, ligar-se à sua montada como se um fosse o prolongamento do corpo do outro. Hoje assiste-se a uma equitação pior, apesar de existirem cavalos cada vez melhores e com mais ferramentas. Hoje já ninguém vai buscar uma montada que anteriormente andou na lavoura, preso a um sacho. Hoje todos sabem a linhagem das suas montadas e escolhem-nas por isso. Curiosamente, os cavaleiros ditos “classicistas”, são aqueles que melhor equitação demonstram. São aqueles que de facto parecem um centauro em praça, mostrando uma união e um domínio tal com a montada, ao ponto de nem marcas de esporas se verem no final das lides.

Aliado a uma equitação mais deficitária, vem todo o resto. E quando acima referia que a cravagem do ferro é o resultado de toda uma preparação, também me referia à interpretação do comportamento do toiro. Há que observar o oponente, há que prová-lo com a montada, há que perceber quais os seus terrenos, há que mexer com o toiro e dar-lhe a lide adequada, não a que vem decorada de casa. Muitos destes aspectos têm-se perdido, parecendo que já muito poucos lidam. Talvez uma das razões para que isto aconteça, seja a escolha de encastes que, hoje em dia, já é regra para muitos. São poucos os que enfrentam qualquer encaste. Já quase não existem Cavaleiros que se formam para enfrentar qualquer toiro. Agora são formados toiros que sejam capazes de enfrentar qualquer Cavaleiro. Nem vale a pena estar a amaldiçoar o encaste Murube, tão de eleição dos Cavaleiros actuais. Os toiros-telecomandados e quase “costum-made”. Mas é maioritariamente com esses que se assiste ao que tem proliferado nas praças nacionais.

As lides (quando existem, na verdadeira acessão da palavra) são cada vez mais acessórias. Não se brega, não se escolhem bem os terrenos. Interessam sim, os adornos (muitos!), os números circenses do cavalinho. As sortes não são preparadas, interessando apenas cravar, de preferência com um câmbio gigante na cara de um toiro com pouco andamento, deixando o ferro quando o oponente já está quase para além da garupa. Rematar a sorte? Muito poucos sabem o que é! Assim se toureia… o público (todos nós!) … e o público gosta! O Cavaleiro explode de emoção e todos aplaudem uma obra distorcida. Deixou de ser a acção na arena a transmitir emoção, para ser o Cavaleiro com a sua euforia e exuberância de festejos a procurar transmiti-la à assistência. O público gosta…. Pois! Mas, depois de assistirem a duas ou três corridas em que tudo é igual, em que tudo está formatado e já se sabe ao que se vai, esse mesmo público começa a querer ver e sentir a verdadeira emoção. Se não a encontra, se não a consegue renovar, procura outro tipo de fonte e abandona as bancadas das praças de toiros.

É no toureio fundamental, na preparação das lides, no cravar ao estribo vencendo o piton, no enfrentar toiros de verdade que mostrem perigo, que está a “galinha dos ovos de oiro”. Sempre ali esteve, não são necessários outros artefactos. Há que evoluir, mas há que perceber que a verdadeira emoção, é aquela que resulta na transformação do verdadeiro perigo em momentos sublimes de arte. A verdadeira emoção é a que resulta da fusão do conhecimento e capacidade de entendimento Cavaleiro/Cavalo com o ímpeto bravio do toiro. São estes momentos de pura imprevisibilidade que fazem com que as pessoas queiram assistir a momentos irrepetíveis de forma repetida, sentindo a emoção e verdade que o toureiro a cavalo deve transmitir.

Bruno Bettencourt
Foto: Paulo Gil

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